Escrito por Eduardo Sá, revista Pais & Filhos, 13
Fevereiro 2012
Se as pessoas são mal-educadas para a boa educação e para a
sexualidade como podem ser felizes?
1.Aquilo a que se foi chamando boa educação tem-nos
estragado, devagarinho. Em primeiro lugar, a esmagadora maioria das pessoas foi
mal-educada para os sentimentos.
Porque lhes disseram que há sentimentos bons e sentimentos
maus, como se uns fossem toleráveis e os outros interditos.
Ora, aquilo que distingue os sentimentos é mais simples.
Todos os sentimentos, pareçam recomendáveis ou maus, são bons. Assim nos sirvam
para nos aproximarmos de quem nos lê por dentro, e com eles percebermos que só
a obscuridade que se atribui ao que sentimos é uma dor que perdura. E dor sem
remissão é maldade. Os sentimentos tornam-se maus quando, através deles,
descobrimos, muito depressa, que as pessoas com quem imaginávamos contar para
lhes pormos legendas (e nelas encontrarmos entendimento para nós) se
transformam em forças de bloqueio para o nosso coração. Todos os sentimentos
que nos desencontram de quem nos ama são maus. E até o amor, se se desacerta de
quem amamos, magoa. E pode, por isso, tornar-se mau.
Em segundo lugar, fomos todos mal-educados para a
agressividade.
A agressividade liga o corpo ao pensamento. É tão natural
como a sede. Injecta ira ou paixão nos nossos gestos. Quando se expressa, a
agressividade, liga-nos a quem nos lê. Torna-se lúdica e pró-activa. E ética. E
só assim aprendemos a ser agressivos com maneiras. Mas quando se guarda expressa-se
com efeitos especiais e aos impulsos. Quando os impulsos são insuflados com
fantasias de violência guardam-se mais e transformam-se em rancor. Ou «ódio de
estimação», se preferirem. E ele assusta. Porque nos torna amigos (assustados)
da violência.
Pelo menos nalguns períodos da nossa vida, todos somos aos
bocadinhos amigos da violência. Basta que fujamos de a confiar a quem nos lê.
(Na maior parte das vezes, tentamos que a violência que se sente de fugida
fique, hermeticamente, fechada, dentro de nós. Fechamos o rosto, fechamos os
gestos, e até o sorriso se fecha num esgar.) Viver a violência não nos torna
odiosos. Aliás, quando encontramos quem a legende para nós, os sentimentos maus
podem ter nessa experiência de comunhão, a porta com que se abre a nossa
redenção.
Em terceiro lugar, fomos mal-educados para as palavras.
As palavras engasgam-nos os gestos quando falar devia
aplainar o coração. Todos os sentimentos são bons, repito, sobretudo se forem
clareados por palavras. Mas se falar em jacto dum sentimento, inquina-o com o
medo de não ser entendido, falar de forma encriptada, como se bastasse dizer o
que sentimos mesmo que ninguém nos entenda, torna-nos amigos da solidão.
Ficando por entender, os sentimentos (que são clarividência e são o que nos une)
transformam-se naquilo que desliga. Isto é: sentimentos sem palavras são
ressentimentos.
E, finalmente, fomos mal-educados para a imaginação.
Porque nos recomendaram que imaginássemos antes de agir,
quando isso é, muitas vezes, uma belíssima forma de complicar. E porque nos
sugeriram comedimento nas fantasias como se se imaginasse de cabeça na lua.
Imaginar não é agir. E, apesar disso, a vida é sempre mais fácil quando se vive
do que quando se imagina. Imaginar será trair? De certo modo, sim. Sobretudo, o
melhor de nós. Que só se revela quando se vive.
Porque fomos mal-educados para os sentimentos, para a
agressividade, para as palavras e para a imaginação, toda a cor daquilo que
sentimos foi ficando pálida e tristonha. Não falamos dos sentimentos. Não dizemos
«não» nem nos zangamos sempre que é preciso. E refreamos a imaginação. Estamos
mal-educados para a boa educação. E, quando é assim, como se pode amar do
coração até à pele?
2. Mas também fomos mal-educados para a sexualidade. Eu sei
que são precisos muitos anos para se saltar – com transparência, autenticidade
e bondade – da fantasia para os gestos com sexualidade. Mas muitas pessoas
passam, precipitadamente, das fantasias sexuais à parentalidade. É por isso que
é urgente falar da sexualidade não tanto como o princípio do prazer mas como
aquilo com que as pessoas constroem a sua infelicidade. Pelos sentimentos que
guardam. E com o silêncio com que os revestem.
É por isso, e porque foram acumulando anos de
mal-entendidos, que vivem a sexualidade como um débito conjugal. Ou sentem-na
como um imposto de valor acrescentado duma relação conjugal. Outras, descobrem
(muito tarde) que nem sempre o seu melhor amigo será um grande amor. (São essas
as pessoas que se refugiam nas dificuldades no adormecer de alguns dos seus
filhos. Ou, logo que vivem a sexualidade como uma experiência de infelicidade,
elegem as dores de cabeça como uma febre de sábado à noite. Ou adormecem,
clandestinamente, todos os dias, no sofá. Para protecção de todas elas, que
serão a maioria dos portugueses, deveríamos tomar a sexualidade como uma
questão de saúde pública.)
É por isso que a sexualidade não é tão natural como a sede.
Apesar do desejo ser amor à primeira vista, a paixão é amor à segunda vista e o
encantamento um amor à terceira. Não é um impulso biológico que se esgota num
orgasmo e que daí se confunda alívio com prazer.
A sexualidade faz bem à saúde. Embora o erotismo não seja um
lado animal que age em nós. O erotismo serve para ir ao encontro do outro. Mas
só a ternura permite que se vá ao encontro do interior do outro (e do seu
impacto estético na nossa vida).
A sexualidade é uma forma de conciliar – num só gesto –
sensações, sentidos e sentimentos. E fazê-lo em dois ritmos que se casam numa
mesma cumplicidade. E numa comunhão entre pessoas que se despem por dentro.
A sexualidade leva-nos da superfície do corpo ao fundo da
alma. Logo que se toca na pele toca-se dentro. Logo que se toca dentro o outro
deixa de ser nosso. Deixa de ser outro. Passa a ser parte de nós.
Por tudo isto:
É urgente dessexualizar a educação. Deixar de imaginar que a
proximidade pega fogo e que duas pessoas, em contacto com o ar, se tornam
produtos mais ou menos inflamáveis.
É urgente inabilitar todas as formas que tomam a sexualidade
como uma tecnocracia para a felicidade. Quer quando se transforma a educação
sexual numa burocracia de gestos isolada do afecto. Quer quando se fala de
disfunções sexuais à margem dos ressentimentos que se esgueiram do corpo,
sempre que são silenciados.
É urgente compreender que cada abraço não é um quero-te!
mascarado de ternura, e que os sentimentos não se devem guardar fora do alcance
das pessoas.
É, também, urgente desmentir que a contenção é o topo de
gama da natureza humana, ao pé da qual todo o prazer deve ser castigado. O
prazer é uma forma de descobrir que a minha liberdade começa onde começa a do
outro.
É urgente fantasiar. As fantasias que nos surpreendem são
próprias de quem namora com a vida. É por isso que a fantasia é o paraíso
fiscal das infidelidades. Os pensamentos põem dúvidas onde parecia só poder
existir a unanimidade da paixão e trazem infidelidades onde, antes, parecia só
se tolerar a unicidade dos afectos. «Pecar» por pensamentos e por omissões faz
bem à sexualidade. Põem em dúvida quem temos connosco: comparam, ambicionam e
devaneiam. Pecar por pensamentos enriquece a relação amorosa, expande a
sexualidade para fora do corpo e devolve-o ao pensamento com a convicção de que
só pecando se chega ao céu.
É urgente explicar que é proibido casar com o primeiro
namorado. Pois só a pluralidade das experiências que nos interpelam torna urgente
descobrir o que queremos em alguém que nos queira.
É urgente acarinhar uma cultura do prazer. Prazer não é
alívio. Prazer a qualquer preço é solidão. Prazer pelo prazer masturbação. Mas
se for 1 em 2, prazer é comunhão.
É urgente proibir que se case para sempre. E que se diga que
uma relação, se não se cuida, não perdura amorosa, para sempre. Só as relações
preciosas são frágeis. Só elas, sempre que nos decepcionam, nos matam para o
amor.
É urgente dizer que amar é sentir e palavrear duma só vez. É
dizer eu e tu ao mesmo tempo. É esperar que o outro saiba sempre mais de nós do
que nós próprios. É conceber a diferença entre imaginar que se voa e aprender a
voar. E descobrir que um amor só é amor quando nos diz: sente-me em ti, olha
por mim, fala por nós.
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